05/10/2011

melhor impossível


Dificilmente mensuramos o poder contido num elogio.
Casualmente ontem à noite me lembrei disso.
Eu tive a sorte de ser alfabetizado por freiras ucranianas. Não que isso fosse totalmente um privilégio, muito pelo contrario, sofri muito nas mãos da maioria delas. Mas, se  não tivesse estudado no Educandário Sagrada Família, não teria conhecido a irmã Julia, Deus me perdoe, o meu primeiro amor platônico.
A Irmã Julia tinha o dom de ensinar por elogios. Digo o dom porque nunca vi alguém fazer algo parecido.
Ela sempre tinha a palavra, a expressão de admiração medida na intensidade certa para animar seus alunos.
Se alguém escrevia alguma bobagem no quadro, ela dizia que a letra tinha melhorado muito, mas que tal palavra era escrita com dois erres ou cê-cedilha, se fosse o caso. Já os garranchos que fazíamos nos cadernos eram sempre decorados com alguma frase de efeito que prontamente nos animava: “Você vai longe!”, “Estou muito orgulhosa de você”, “Muito bonito” ou qualquer coisa do gênero.
Uma vez que, durante a sua aula resolvi colocar em prática os conhecimentos recém adquiridos no poderoso “Manual dos Escoteiros do Huguinho, Zezinho e Luizinho”.
Eu construí um dos melhores aviões de papel de que me lembro. Podia tê-lo guardado simplesmente e esperado o momento certo para lançá-lo durante o recreio. Mas estava tão cego com a minha obra-prima que resolvi lançá-lo justamente durante a aula da minha querida Irmã Julia.
O avião flutuou elegantemente em círculos pelos quatro cantos da sala e foi pousar no único lugar impossível naquele momento, exatamente na cabeça da Irmã Julia. Ela estava de costas e escrevia no quadro-negro.  
Diante das risadas de todo mundo, ela se virou lentamente, pegou o aviãozinho e o lançou de novo no ar. Ele voou ainda melhor que da primeira vez e com a voz doce de sempre decretou: “Esse é o melhor avião de papel que eu já vi voar. Quem o fez?”  Eu rapidamente fiquei de pé e todo orgulhoso com o elogio da minha amada, disse: Fui eu, Irmã!
Então ela caminhou em minha direção e olhando bem nos meus olhos me disse: “O seu avião é muito bom, mas você não devia tê-lo jogado durante a minha aula de religião, não me resta alternativa senão levá-lo de castigo pra sala da irmã-diretora”.
É claro que a Irmã Diretora não era tão legal quanto a Irmã Julia. Tanto é verdade que até já esqueci o seu nome.
Mas comecei contar essa historinha dizendo que ontem à noite eu me lembrei do poder que tem um elogio.
É que no meio de mais uma madrugada insone eu assistia a um filme muito legal, “As Good As It Gets”, com Jack Nicholson e Helen Hunt.  
Pra quem ainda não viu ou não se lembra, nesse filme, Melvin (Jack Nicholson) é um escritor cheio de transtornos obsessivos. Dentre várias outras, uma das suas compulsões favoritas é soltar a sua língua afiada contra todo mundo que cruze o seu caminho.
Um dia ele se interessa pela garçonete Carol (Helen Hunt) que trabalha  na lanchonete que ele almoça todos os dias. Após muito insistir, Melvin convence Carol a sairem para jantar num lugar bacana. O maître do restaurante pra onde eles vão sugere a Melvin que ele devia estar de paletó. Ele não tem dúvidas, larga Carol boquiaberta no restaurante e sai comprar o dito cujo. Ao voltar começa um diálogo com a seguinte pérola:
-Não entendo este lugar. Me fazem comprar paletó e você com um simples vestido caseiro, não entendo...
Carol, que usava o seu melhor vestido, levanta-se e ameaça ir embora. Melvin fica desesperado:
-Não entendo, espere, o que foi? Aonde vai?
-Eu não quis ofender. Sente-se, por favor. Pode me olhar com desprezo, mas sente-se.
-Me faça um elogio, Melvin, eu preciso muito de um. Rápido. Você não faz ideia de como me magoou.
-No momento em que as pessoas veem que precisam de você, elas ameaçam ir embora. Tudo bem, agora eu vou te fazer um grande elogio, e é verdade.
-Tenho medo de que diga algo terrível...
-Não seja pessimista, não é seu estilo. Eu vou dizer, embora seja um erro... Eu tenho uma doença. Meu médico, um psiquiatra que me trata, disse que em 50 ou 60% dos casos... Um comprimido resolve. Odeio comprimidos, são coisas perigosas! O meu elogio é... Na noite em que você bateu na minha porta e disse que jamais dormiria comigo, bem... Você sabe... Você estava lá e sabe o que disse... O meu elogio a você é que no dia seguinte eu comecei a tomar os tais comprimidos.
-Melvin, eu não entendo como isso possa ser um elogio.
-Você me faz querer ser um homem melhor.
Após sorrir e um breve silêncio Carol o manda calar a boca e tasca-lhe um beijo
-Devo ter exagerado. Eu só queria impedir que você fosse embora.
Era exatamente sobre isso a que eu me referia quando disse ser impossível mensurar o poder de um elogio. Melhor impossível.


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